sexta-feira, 4 de julho de 2014

ESPIRITISMO E ÉTICA DA ALTERIDADE

ESPIRITISMO E ÉTICA DA ALTERIDADE
Sergio F. Aleixo
Frei Betto pergunta e responde: “O que é alteridade? É ser capaz de apreender o outro na plenitude da sua dignidade, dos seus direitos e, sobretudo, da sua diferença”.[1] Assim, esta nova ética filosofal quer estabelecer uma relação de entendimento e paz entre os que considera essencialmente diferentes, afinal, para um dos maiores teóricos do assunto: “O absolutamente outro é outrem; não faz número comigo”.[2] Sem discutir a real possibilidade de uma tão abismal distinção entre os filhos de um mesmo Deus, o fato é que tem sido essa a ambiência teórica que há fomentado a ânsia pelo pluralismo filosófico e doutrinário em nossas fileiras de uns tempos para cá, um espiritismo em que Kardec não seja senão mais uma das “correntes” do pensamento espírita.
O instrumento de que se servem esses irmãos mais irrequietos é justamente um discurso em que se postam como paladinos da nova ética da alteridade; tudo, é claro, para progredirem sem óbices no movimento espírita, fazendo os adeptos menos avisados crerem que não seria boa conduta opor-lhes resistência ou às suas ideias. Grosso modo, a filosofal ética alteritária não é exatamente uma novidade para o espiritismo. Pode-se dizer que é a via de luz em que, desde sempre, tem encontrado sua identidade de fé raciocinada, e não essa viela escura de novidadismos confusos em que, num minuto insano, logo a perderia.
Ninguém respeitou mais as diferenças e apreendeu o outro em sua plenitude e dignidade do que o professor Kardec. O controle universal que criou o obrigava a levar muito a sério até o que entidades de pouca elevação tinham a dizer sobre a vida espiritual. Para ele, os espíritos foram, “do menor ao maior”, meios de se informar, não reveladores predestinados.[3] Aos detratores, mesmo aos mais encarniçados, respondia serena, mas altivamente:
“O espiritismo proclama a liberdade de consciência como direito natural; reclama-a para os seus adeptos, do mesmo modo que para toda a gente. Respeita todas as convicções sinceras e faz questão da reciprocidade”.[4]
Todavia, o que saberiam realmente da filosofal ética da alteridade os que, desde a morte do mestre lionês até hoje, asseveram que Kardec está ultrapassado e oferecem aos espíritas, como solução ao suposto problema, as obras que eles próprios adotaram de outrem, escreveram por si ou receberam de espíritos? Isso não é um desrespeito à diferença? Não é uma imposição? Mais ainda: se insistem em se dizerem espíritas, negando, contudo, a validade da obra de Kardec para os dias de hoje, não se trata, pois, de uma usurpação? A verdade é que não pode haver nenhuma ética da alteridade nisso, a menos que a reciprocidade seja aí algo de somenos. Se agissem conforme a nova ética filosofal, reconheceriam ser o pensamento espírita algo “diferente” do que concebem nas suas ações de franca censura a Kardec; definitivamente, um "outro" que não é "outrem" e, afinal, bem diverso, que merece, portanto, o respeito de existir da forma mais limitada e atrasada que assim a julguem.
Mas não. Os senhores da nova ética da alteridade, paladinos do pluralismo filosófico e doutrinário dentro das fileiras espíritas, estão sempre dispostos a se proclamarem adeptos do espiritismo, embora defendam contraditórios ao pensamento kardeciano, tais como: 1) a reencarnação é castigo a espíritos falidos noutra dimensão (rustenismo); 2) incensos e defumadores são válidos, pois representam detonadores de miasmas astralinos (ramatisismo); 3) a atual filosofia espírita é limitada por não nos esclarecer as primeiras origens do universo e o plano geral da criação, faltando-lhe, assim, visão completa do todo (ubaldismo); 4) o espiritismo é uma doutrina laica, neutra quanto ao pensamento religioso e, desse modo, não cristã (laicismo pan-americano); 5) espiritismo é toda forma de interpretação que possibilite ao homem a sua espiritualização, razão pela qual, nos centros e associações espíritas, deve imperar o regime do mais livre pluralismo de concepções acerca dos postulados da doutrina (Atitude de Amor), etc., etc.
Não é soberbo que campeões da filosofal ética alteritária defendam o respeito às diferenças e, para o caso particular da diferença que caracteriza o espiritismo em si, trabalhem por diluí-la, tendo por fim transformá-lo no produto nada alteritário de suas próprias concepções, a título de "atualização", de "contribuição" a sua sobrevivência? Não é singular que, de um lado, combatam as ações doutrinantes da velha postura colonial e, de outro, não hesitem, a seu modo, em reproduzi-las contra a identidade kardeciana do espiritismo, cuja diferença deveria ser apreendida por eles na inviolável plenitude de sua dignidade? Onde então a ética da alteridade? Querem-na por obrigação alheia, mas não a impõem a si mesmos neste caso.


[1] Alteridade. In: Agencia Latinoamericana de información. http://alainet.org/active/3710〈=es
[2] LÉVINAS, E. Totalidade e infinito. Trad. José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1988, p. 26.
[3] Obras Póstumas. Minha primeira iniciação no espiritismo.
[4] Obras Póstumas. Ligeira resposta aos detratores do espiritismo.
Fonte: ENSAIOS DA HORA EXTREMA

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